19 de outubro de 2025
Lawfare no Brasil é “Flórida
Autor: Daniel Menezes
Ricardo Valentim
Professor da UFRN
O título é provocativo, pois carrega uma ironia amarga e uma denúncia contundente e honesta. O tema evoca a ideia de que o direito — em sua essência, um instrumento de justiça e pacificação social — pode, infelizmente, ser distorcido, manipulado e transformado em uma arma de guerra política.
A Operação Lava Jato, com seus protagonistas, os antigos “heróis nacionais” Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, permanece como o mais notório e controverso exemplo dessa prática no cenário nacional. Suas ondas de choque ainda reverberam na estrutura política, social e democrática do país, criminalizando nossas instituições e seus agentes públicos e políticos.
A reflexão proposta no livro de Cristiano Zanin, "Lawfare: uma introdução", não é apenas um exercício acadêmico, mas um diagnóstico preciso e contundente de uma patologia que adoeceu a democracia brasileira e degenerou gravemente a política nacional.
Embora a percepção popular possa associar a gênese do lawfare a um plano maquiavélico traçado nas universidades da Flórida, a realidade é um pouco mais complexa. O termo foi, de fato, cunhado no início do século XXI pelo major-general da Força Aérea dos Estados Unidos, Charles Dunlap. Ele o concebeu, inicialmente, para descrever como atores mais fracos poderiam usar o direito internacional para se contrapor a uma superpotência militar. Todavia, o conceito foi rapidamente adaptado para descrever o uso estratégico do direito por qualquer ator, inclusive o próprio Estado, para deslegitimar, neutralizar e aniquilar um inimigo. A academia norte-americana, e isso inclui também as instituições da Flórida e de outros estados, debruçou-se sobre o tema para analisar suas implicações na geopolítica e na guerra assimétrica.
A repercussão dessa "guerra jurídica" no Brasil foi devastadora para nossa democracia. A Operação Lava Jato, sob o pretexto de combater a corrupção sistêmica em nosso país, adotou táticas que, segundo seus numerosos críticos, configuraram um claro exemplo de lawfare. A espetacularização de prisões preventivas, muitas vezes baseadas em delações premiadas frágeis e controversas, a condução coercitiva de investigados sem prévia intimação e o vazamento seletivo de informações para a imprensa criaram um "tribunal da opinião pública" que condenava antes mesmo do devido processo legal. O linchamento público “estratégico” era o suficiente para condenar um inocente.
Moro, na posição de juiz, e Dallagnol, como coordenador da força-tarefa do Ministério Público Federal, foram figuras centrais nesse processo e, posteriormente, acusados de agir com parcialidade e de terem um projeto de poder que transcendia a aplicação técnica, ética e imparcial da justiça.
A instrumentalização do direito como arma política feriu de morte princípios basilares de nossa democracia; era um ataque feito às claras, sem nenhum pudor ético, moral e legal. A presunção de inocência foi pulverizada, não pelo direito, mas pela convicção — bastava “o meu sentir” para indiciar um cidadão inocente. O direito à ampla defesa foi relativizado, e a própria imparcialidade do Judiciário, colocada em xeque. A seletividade dos alvos, a demonização de adversários políticos (inimigos) e a colaboração indevida entre acusação e juízo, revelada posteriormente por vazamentos de conversas, expuseram as entranhas de um sistema que parecia mais interessado em resultados políticos e privados do que na observância rigorosa e estrita da lei. O objetivo, para muitos, não era apenas punir ou acabar com a corrupção, mas redesenhar o mapa político do país e afastar do poder determinadas forças ideologicamente não convergentes. Era preciso abrir caminho para uma nova hegemonia, mesmo que isso fosse feito de forma espúria e antidemocrática.
Foi nesse contexto de justiçamento e excessos que a tragédia se abateu sobre a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) de forma emblemática, simbólica e cruel. O suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, em outubro de 2017, é a cicatriz mais profunda e dolorosa da violência causada pelo lawfare no Brasil. Isso realmente é “Flórida” em nosso país, cuja Constituição garante o direito à ampla defesa e a presunção de inocência. Preso em setembro daquele ano no âmbito da Operação Ouvidos Moucos, que investigava supostos desvios em cursos de educação a distância, Cancellier foi submetido a uma humilhação pública avassaladora. Afastado de suas funções e proibido de entrar na universidade à qual dedicou sua vida, o reitor teve sua reputação destroçada. A prisão, considerada por muitos como desnecessária e abusiva, e a exposição midiática que se seguiu criaram um cenário de aniquilamento moral que ele não suportou. O caminho, infelizmente, foi a morte, o suicídio.
A posterior absolvição de Cancellier, com o arquivamento do inquérito pela Polícia Federal e pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por falta de provas, tornou sua morte ainda mais trágica e revoltante. O caso expôs de forma inequívoca como a combinação de poder discricionário, espetáculo midiático e ausência de freios institucionais pode levar a consequências fatais e irreparáveis. A morte de Cancellier não foi um dano colateral; foi o resultado direto de um método que despreza as garantias individuais e os direitos humanos, tudo isso em nome de uma suposta cruzada moral — que anos depois demonstrou ser um projeto de poder. O destino do reitor da UFSC representa um grito de alerta para a urgência de coibir e punir os excessos e abusos de agentes do Estado, para que a busca por justiça não se transforme em uma máquina de moer reputações e vidas.
As repercussões do lawfare praticado durante a Lava Jato e em outras operações correlatas não se limitaram às vítimas diretas. A desconfiança generalizada no sistema de justiça, a polarização política exacerbada e a criminalização da política, das instituições e de agentes públicos como um todo criaram um ambiente de instabilidade e ressentimento que teve profundas consequências para o futuro do país — foi exatamente esse fenômeno que colocou o Bolsonarismo no Poder. Uma dessas consequências, como apontado na provocação inicial, foi a ascensão de um Congresso reativo, reacionário e, por vezes, delinquente, que, sob o argumento de coibir abusos, busca aprovar medidas que, na prática, configuram-se como um retrocesso no combate à corrupção, pois o propósito é somente garantir a impunidade de seus próprios membros, algo surreal em nosso país.
A chamada "PEC da Vingança" (PEC 05/2021), que visava alterar a composição do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para aumentar o controle político sobre o órgão, foi uma das primeiras e mais despudoradas reações do Poder Legislativo. Vista por procuradores e por parte da sociedade como uma tentativa de amordaçar o Ministério Público e retaliar a Lava Jato, a proposta gerou intensa controvérsia e acabou sendo, felizmente, rejeitada na Câmara dos Deputados, porém por uma margem apertada. A alcunha de "PEC da Vingança" resumia o sentimento de que, em vez de aprimorar os mecanismos de controle e accountability, a proposta buscava simplesmente neutralizar a capacidade investigativa do Ministério Público, algo realmente degradante para nossa sociedade, especialmente no contexto democrático.
Assistimos mais recentemente a outro ataque à democracia. A discussão em torno da chamada "PEC da Blindagem" ou "PEC da Impunidade" reacendeu um debate que parecia superado. Essa iniciativa legislativa é interpretada por muitos como a materialização do que se pode, envergonhadamente, chamar de "PEC da Bandidagem". Esse fenômeno é, de fato, uma evidente tentativa de se criar uma casta de cidadãos que estariam acima da lei, protegidos de investigações e processos que atingiriam qualquer cidadão comum — é uma PEC questionável por subtrair do Poder Judiciário uma de suas competências essenciais: a de decidir se um cidadão, seja quem for, deve ou não ser investigado. No Brasil, esse fenômeno pode ser visto como um efeito pêndulo: nosso país passou de um período de excessos punitivistas para uma busca de garantias que beiram a impunidade. Hoje é preciso regular o excesso de abusos e de irregularidades cometidas por órgãos de controle, mas não impedir que investigações ocorram. No Brasil, infelizmente, existem muitos abusos de órgãos de controle, os quais interferem de forma indevida, muitas vezes de forma irregular e fora da legalidade estrita. Todavia, o antídoto para isso passa pela responsabilização oportuna e rigorosa dos excessos. Os órgãos de controle são componentes importantes no Estado Democrático, por isso devem ser fortalecidos institucionalmente, mas é preciso sempre lembrar que não estão acima da lei.
Esses movimentos legislativos, "PEC da Vingança" e "PEC da Bandidagem", embora condenáveis em sua essência, não podem ser dissociados do contexto que os gerou; a história não se apaga. O lawfare no Brasil, ao ferir a democracia e corroer a confiança nas instituições, abriu espaço para que a defesa de privilégios e a obstrução da justiça pudessem ser disfarçadas de defesa do Estado de Direito e das garantias individuais. A luta contra o arbítrio e o abuso de autoridade, que deveria unir a todos, foi sequestrada por interesses corporativistas e políticos, o que criou uma falsa dicotomia entre o combate à corrupção e a defesa dos direitos fundamentais.
Em resumo, a trajetória do lawfare no Brasil — e aqui reside a ironia de ser "Flórida" — é, de fato, mais uma narrativa de como a politização da justiça e a judicialização da política podem levar a um ciclo vicioso de destruição institucional. Começa com a manipulação das leis para perseguir inimigos, gera vítimas como o reitor Cancellier, cuja morte é um símbolo da brutalidade do sistema, e culmina em uma reação política que, a pretexto de corrigir os erros, aprofunda a crise de representatividade e a desconfiança na capacidade do Estado de promover justiça de forma equânime.
Refletir sobre o lawfare “made in Brazil” e “based in Florida”, com suas trágicas repercussões, é mais do que um exercício de memória. É uma tarefa cívica urgente e necessária. Nosso país não pode mais aceitar esse tipo de ingerência e retrocesso. É preciso reafirmar que o combate à corrupção é indispensável, mas ele só se legitima quando feito dentro dos marcos do devido processo legal e com respeito inabalável às garantias constitucionais. Caso contrário, o Estado assume o papel de delinquente.
Coibir e punir os excessos e os abusos não é uma opção, mas uma necessidade para a sobrevivência da própria democracia. Sem isso, a lei continuará a ser vista não como um escudo protetor do cidadão, mas como a espada afiada de uma guerra política sem fim, na qual todos, ao final, saem derrotados. No contexto de lawfare, infelizmente, as democracias simplesmente morrem.
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