6 de setembro de 2025
Lawfare e o cenário político brasileiro: “bandido bom é bandido anistiado”
Autor: Daniel Menezes
Ricardo Valentim
Professor Associado da UFRN
A obra "Lawfare: Uma Introdução", escrita por Cristiano Zanin, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim, é fundamental para a compreensão de como o direito pode ser usado como uma arma política no Brasil. O termo lawfare, que une "law" (lei) e "warfare" (guerra), descreve uma estratégia em que o sistema jurídico e judicial é instrumentalizado para atingir adversários políticos, deslegitimar suas ações e até mesmo eliminá-los do cenário público.
O Brasil se tornou um laboratório para a aplicação do lawfare, com a Operação Lava Jato sendo o caso mais notório e emblemático. O que se apresentava publicamente como uma cruzada anticorrupção, movida por ideais de moralidade e transparência, escondia, segundo a análise da obra e de juristas como o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, um plano meticuloso de uso estratégico do direito. Era uma piscina cheia de ratos, na qual as ideias não correspondiam aos fatos, mas sim a uma ideia magnânima que escondia interesses obscuros.
A Operação Lava Jato, sob a liderança do então juiz Sergio Moro, inaugurou no Brasil um novo paradigma de atuação do sistema de justiça. A lógica da operação se baseava na criação de um espetáculo midiático, onde a imprensa era parte fundamental do processo. Notícias se transformavam em condenações antes mesmo do julgamento, violando o princípio da presunção de inocência, pois o denunciado era considerado culpado antes do trânsito em julgado. Essa sinergia entre o Judiciário e a mídia de massa corroeu a credibilidade das instituições e a própria noção do devido processo legal e do Estado democrático de direito. A Constituição era vilipendiada a olhos nus.
A obra de Zanin, em sintonia com as críticas de juristas de renome como Kakay, aponta que o lawfare se manifestou por meio de uma série de abusos, como o uso indiscriminado de prisões preventivas, que se tornaram instrumentos de coerção para forçar delações “premiadas”. O advogado Kakay sempre alertou para a “guerra” travada contra a advocacia, a destruição do devido processo legal e a banalização dos direitos fundamentais em nome de uma suposta "moralidade", uma moralidade sem base legal, apenas convicções movidas por interesses nada republicanos. As delações premiadas, estrategicamente rebatizadas de "colaborações", se tornaram, nesse contexto, uma ferramenta para produzir "verdades" fabricadas, muitas vezes sob coação psicológica, com o objetivo de incriminar alvos específicos.
A consequência desse processo foi a destruição de empresas nacionais e a aniquilação de reputações de lideranças políticas. Quem ganhou com isso? O foco não era apenas a punição de crimes, mas a eliminação de concorrentes e inimigos do cenário político e econômico. Eram muitas coincidências para serem consideradas apenas eventos aleatórios; um bom estatístico nunca acredita em coincidências. O lawfare, portanto, não é apenas um desvio de função do direito, mas uma forma de guerra híbrida que ataca a soberania e a estrutura democrática de um país.
A degradação institucional promovida pelo lawfare abriu um vácuo político que foi preenchido por forças antidemocráticas, e um "mito" foi criado quase que organicamente. A destruição da credibilidade das instituições tradicionais, como o Congresso e os partidos políticos, e a desmoralização de figuras centrais da política, como o ex-presidente Lula, pavimentaram o caminho para a ascensão de um discurso populista e autoritário: o Bolsonarismo.
O lawfare foi crucial para a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Ao invalidar a candidatura de Lula, que liderava todas as pesquisas de intenção de voto, a Operação Lava Jato alterou fundamentalmente o curso da história política brasileira. A condenação e prisão de Lula em segunda instância, posteriormente anuladas e reconhecidas como resultado de uma perseguição política, foram o ponto alto dessa estratégia.
O discurso de combate à corrupção, que serviu de fachada para o lawfare, criou um clima de indignação popular que foi habilmente capitalizado por Bolsonaro e seu círculo bolsonarista. O próprio Sérgio Moro, figura central da Lava Jato, se tornou ministro da Justiça no governo Bolsonaro, o que evidenciou a íntima conexão entre o “lavajatismo”, o “bolsonarismo” e o projeto político que se instalava no Brasil.
O bolsonarismo se alimentou diretamente da desconfiança nas instituições, do ataque à imprensa tradicional e da defesa de métodos de "mão de ferro" – quem não se lembra da frase “bandido bom é bandido morto”? – para combater a corrupção, exatamente as táticas que o lawfare havia legitimado. As consequências foram visíveis e alarmantes. O desmonte de políticas públicas, o aparelhamento de órgãos de controle e a tentativa de minar a autonomia do Judiciário e do Ministério Público se tornaram rotina. A destruição sistemática da presunção de inocência e a propagação de notícias falsas ("fake news") ganharam força, sendo instrumentalizadas pelo bolsonarismo para descredibilizar adversários e fortalecer sua base de apoio.
O ápice desse processo de degradação institucional e de radicalização política se deu nos atos de 8 de janeiro de 2023. A tentativa de golpe de Estado, com a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, não foi um evento isolado, mas o resultado lógico e extremo de anos de um ataque planejado à democracia brasileira. O lawfare, ao deslegitimar as regras do jogo democrático e ao criar um ambiente de polarização e ódio, forneceu elementos imagéticos e populares perfeitos para a violência e a insurreição.
A linguagem e as práticas do lawfare, como a descredibilização de adversários e o uso de acusações sem provas, bastavam a convicção e um sentir “moral” abstrato, quase esotérico, geralmente movidos por uma hermenêutica criativa para condenar qualquer cidadão brasileiro. O que começou com a instrumentalização do sistema de justiça, culminou com o ataque frontal à ordem constitucional. A tentativa de golpe, portanto, pode ser vista como a consequência final e mais grave do processo de lawfare vivenciado no Brasil da Lava Jato.
A análise da obra de Zanin e de juristas como Kakay evidencia que a democracia brasileira perdeu seu alicerce de credibilidade. O uso do direito para fins políticos desmoralizou a justiça, enfraqueceu as instituições e, em última instância, fortaleceu um projeto de poder que despreza o Estado Democrático de Direito. A tentativa de golpe de 8 de janeiro é o símbolo de que, quando as leis são usadas como armas contra o cidadão, a primeira vítima é a própria democracia.
Se durante a Lava Jato, período em que o que valia era o lawfare, o lema foi “Bandido bom é bandido morto”, hoje os “filhos herdeiros” do lavajatismo defendem que “bandido bom é bandido anistiado”. Esse fenômeno é observado, infelizmente, em parte do poder legislativo federal, que agora luta para aprovar uma emenda inconstitucional de anistia para beneficiar o bolsonarismo.
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