24 de novembro de 2025

Vento e tempestade

Autor: Daniel Menezes

Por Daniel Lemos, Jornalista e Professor da UFRN

 

Por quantas tempestades a gente passa na vida?

De quantas tempestades somos capazes de sobreviver?

Podemos sobreviver de maneira incólume?

Foram tantas tempestades que como país nós passamos, né? Tantas tempestades nos abalaram ao longo de nossa história, quantas nos marcaram, quantas vezes sobrevivemos, com tantas cicatrizes.

A ditadura militar me deixou, pessoalmente, cheio de cicatrizes. A minha vida é uma cicatriz da ditadura. Meu pai foi o que foi como meu pai porque a ditadura era uma cicatriz que nunca curou nele e que, por isso mesmo, terminou por levá-lo, vinte anos depois da anistia. Eu sou, como muitos, a marca dos afetos afetados pelas torturas que permitimos que os militares nos fizessem sem que jamais pagassem pelo mal feito. Doutor Fernando, gafanhoto, coronel Cúrcio Neto, torturava meu pai enquanto lia a Bíblia para ele. Doutor Fernando, Cúrcio Neto, com quem Mercia Albuquerque sempre teve que lidar para proteger os filhos de tantas mães que a procuravam e para quem ela não tinha coragem de mentir. 

O coronel gafanhoto que a agredia mesmo sendo, da porta para fora do DOI-CODI, amistoso e educado.  Mercia, mãe coragem de sua própria cria e de tantos outros filhos de outras mães, como Emanuell de Joana.

Meu pai contava que foi, por engano, colocado na cela de Zé Carlos e falou com ele, moribundo, torturado, triturado, desumanizado, mas resistente. Não havia entregado ninguém.

Mercia lutou para que o corpo morto de Zé Carlos, entregue a uma tumba no cemitério da Várzea em Recife, pudesse ser finalmente entregue à sua família. 

Meu pai nunca se recuperou da ditadura e nunca perdoou a anistia que impediu que Mercia se encontrasse com o sádico doutor Fernando num tribunal. Ela viu coisas que não conseguia contar - que riscou e arrancou das páginas de seu diário.

Lady Tempestade é um vento forte que nos inspira à resistência contra todo autoritarismo.

Pude ver, aqui em Recife, Andrea Beltrão se encontrando com Mercia e falando sobre ventos e tempestades. Um vento que incorporava nela e que a impediu de viver de novo sem se importar, sem pensar naquela advogada cujo sobrenome podia ser coragem.

Meu pai é citado numa página do diário da Lady Tempestade. Roberto Furtado ligou para ela e contou que ele havia sido sequestrado pelos gafanhotos. Foi trazido para cá. Foi torturado, colocado ao relento, pendurado no pau de arara, empalado, violado. Doutor Fernando, quase como uma metáfora do que ainda veríamos nos nossos dias, um sádico militar que, crente, lia a Bíblia para aqueles que torturava.

Assistir Lady Tempestade é um imperativo.

Minha amiga Ana Maria Queiroz me disse que a peça não é sobre Mércia, mas sobre como o encontro com Mércia afetou Andrea Beltrão. E foi isso que mais nos emocionou na peça. Andrea, ou A. Graças a Roberto Monte, ou R.  Que nos fez conhecer o legado dessa mãe coragem, que morreu em 2003. Mamãe não chore, a vida é assim mesmo. 

Lady Tempestade é um vento, uma tempestade que nos lembra que o que aconteceu, ainda acontece e acontecerá de novo. Ou não.

Lady Tempestade é uma resistência. Para que possamos impedir. Para que possamos pedir. Para que possamos sentir.

E hoje, 22 de novembro de 2025, é dia de Tempestade. Não é dia de Cúrcio, doutor Fernando, Fleury (que também torturou Rubens). Hoje é dia de festa. Pelo menos por hoje não vai acontecer de novo.

Hoje é dia de celebrar. Hoje é dia em que Bolsonaro foi preso. Para nos lembrar que podemos. Podemos impedir que aconteça de novo. Porque o Tempo é Rei. 

A vida é assim mesmo e o que ela nos pede é, sempre, coragem.

Viva Mercia Albuquerque.

Viva Andrea Beltrão.

Viva Roberto Monte, Rubens Lemos. 

E viva o pastor Ismael Lopes.

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