6 de novembro de 2025

‘Carreguei mais de 80 corpos’: relatos do terror nos complexos da Penha e do Alemão

Autor: Daniel Menezes

Por Rafael Costa – Ponte Jornalismo

Erivelton Correia tem 48 anos e sempre atuou em umas das associações de moradores do Complexo da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro. Morador há 11 anos na comunidade, ele foi uma das pessoas mais ativas no resgate dos corpos abandonados na mata pelas autoridades policiais.

“Eu carreguei mais de 80 corpos lá de cima. Entreguei seis no hospital Getúlio Vargas e o restante trouxe para cá para tentar identificar as pessoas, coisa que a segurança pública não fez”, lamenta ele, apontando para a Praça São Lucas — nacionalmente eternizada pela imagem bárbara de dezenas de cadáveres enfileirados no chão, entre mães e parentes desesperados.

Os complexos do Alemão e da Penha são duas favelas que compõem uma grande área no coração da zona norte da capital fluminense. Somadas, essas comunidades concentram cerca de 180 mil moradores — hoje traumatizados pelas cenas que presenciaram naquele fatídico 28 de outubro de 2025 em que o número de vítimas da violência de Estado superou os 111 mortos do Massacre do Carandiru.

“Agora eu falo que, infelizmente, isso não vai parar”, afirma Erivelton. “Existe a primeira, a segunda, a terceira vez sempre. Já houve outras matanças na comunidade. Resolveu alguma coisa? Só aumentou a quantidade de corpos do genocídio.” Para ele e muitos outros representantes da comunidade, não são soldados e caveirões que devem subir o morro. “O que tem que vir pra cá é projeto social. E eles não elaboram nenhum projeto como esse, nenhum projeto social para dentro de comunidade”, indigna-se.

Morador da Penha há 11 anos, Erivelton Correia carregou nas costas os corpos deixados na mata após a operação policial: “Infelizmente, isso não vai parar” | Foto: Uendell Ferreira/Ponte Jornalismo

Fim do sonho de pacificação

A área de mata onde os corpos foram resgatados é a região da chamada Serra da Misericórdia. A área verde divide o Complexo do Alemão do Complexo da Penha e é usada como travessia por moradores que moram nas partes mais altas da favela.

A Serra da Misericórdia ficou famosa em 2010, depois que a TV Globo registrou a fuga de traficantes durante a entrada do exército no Complexo do Alemão. Após aquele episódio, uma “era de paz” invadiu a comunidade e a Serra da Misericórdia foi, inclusive, palco de maratonas, além de receber uma praça ampla, o Campo da Mina, com quadra de futebol e brinquedos de madeira para as crianças.

Com a falta de investimentos do Estado, no entanto, esse sonho de pacificação foi se perdendo no tempo, restando à Serra da Misericórdia seu antigo papel de local de travessia de moradores e de refúgio para traficantes. Na data da chamada Operação Contenção, cerca de 2.500 agentes avançaram sobre a Penha e o Alemão. Diante dos intensos tiroteios que iniciaram por volta das 5h da manhã, os moradores ficaram encurralados em suas casas.

“Eu estava saindo para trabalhar na hora. Não consegui chegar no trabalho. Foi o dia inteiro de tiros. E as mensagens nos grupos falando quem eles mataram”, relembra Taiane de Oliveira, de 32 anos, ainda impactada pelo resgate dos corpos da mata. “Estamos sem ânimo para nada, porque nunca vimos isso acontecer aqui na Penha. A gente só quer paz”.

Na quinta-feira (30/11), um ato no Complexo da Penha registrou o luto das famílias e a indignação com o abandono de uma comunidade sem assistência ou projetos sociais | Foto: Uendell Ferreira/Ponte Jornalismo

‘Foi toda uma sociedade que falhou’

Ao lado de Taiane, duas outras meninas, vestidas de branco, observam a movimentação das motos na Praça de São Lucas. Uma delas presta atenção na entrevista da Ponte e é incentivada pela colega a falar com a nossa reportagem. Ela se identifica como Fabiana. “No dia da operação, eu estava em casa com meus dois filhos. A gente se deitou no chão e ficamos um bom tempo assim, porque eram muitos tiros. Não terminavam nunca”, conta.

“Foi uma madrugada tensa. De dia, os moradores estavam pedindo ajuda, pedindo para outros moradores saírem de casa para ver se [a operação] parava. Mas todo mundo estava com medo”. Fabiana também reflete sobre a realidade da favela, com a falta de políticas públicas. “Não criamos nossos filhos para entrarem para o crime. Mas quando entram, foi toda uma sociedade que falhou, principalmente o governo. Se tivesse escola de qualidade, esporte de qualidade, presença deles sem ser com armas, com tiros e mortes, nada disso aconteceria”, afirma.

O fotógrafo Fabrício Souza, de 24 anos, acompanhou o resgate dos corpos durante a noite e início da manhã. “As mães subiram pra mata porque elas não achavam os filhos aqui na Penha. Nós encontramos muitas coisas. Garrafas d’água, remédios, roupas, mochilas”. Um ponto chamou a atenção de Fabrício: “Várias árvores em volta do acampamento tinham marcas de bala, como se elas estivessem vindo de cima”. Além disso, o fotógrafo também relatou que uma pessoa sem uma perna foi encontrada na mata. “Ele ainda estava vivo. Desceram com ele, mas não sei para onde levaram.”

Na quarta-feira, o Complexo da Penha recebeu as visitas das ministras Anielle Franco e Macaé Evaristo, do governo federal, que ouvem os relatos dos moradoras sobre o massacre. A deputada Benedita da Silva (PT-RJ) também se fez presente. Enquanto famílias das vítimas ainda reconheciam corpos e choravam nas ruas, o governador do Rio, Cláudio Castro (PL-RJ), veio a público classificar a “megaoperação” — como a grande mídia insiste em chamar o episódio — como um “sucesso”.

E fez uso de um vocabulário bélico para anunciar: “O Rio está sozinho nessa guerra. Aí é muito fácil criticar as forças estaduais, criticar o governador, quando o Estado está, talvez sim, excedendo as suas competências. Como nós jamais abandonaremos a população, se tiver de exceder, excederemos mais ainda para proteger a nossa população”, completou o governador.

Foto: Uendell Ferreira/Ponte Jornalismo

‘Me dá forças, meu Pai’

Na quinta-feira (30/11), um ato aconteceu no Campo da Ordem, no Complexo da Penha. O Campo fica na parte baixa da comunidade, bem próximo da Praça de São Lucas. Debaixo de um céu cinza do qual desce uma garoa fina, pessoas de várias comunidades vão se agrupando sob as bordas dos telhados. A maioria veste camisas brancas e carregam faixas pedindo a saída de Cláudio Castro do governo.

A rua enche, e os abraços de apoio vão se multiplicando. Ana Tobossi, ativista do movimento negro nascida e criada na Vila Cruzeiro, na Penha, desabafa sobre o descaso e a atitude do Estado durante e depois da operação policial. “A que ponto o ser humano chega um um país que não tem pena de morte, e o Estado se sentindo no direito de chegar matando pessoas, quase 200 pessoas? E o pior: é um Estado que não dá nenhuma estrutura, não tem educação, não tem saúde, não tem nada. Nem para descer os corpos [serviu]. Os corpos jogados na mata, com um ritual de crueldade”.

Enquanto caminhamos entre as pessoas presentes, o que vemos e ouvimos são lágrimas e gritos. Um homem de branco, com guias penduradas no pescoço, cai no choro, pedindo forças pela sua fé. “Me dá forças, meu Pai! Me dá forças!”, grita, enquanto é amparado.

Mototáxis ocupam os contornos do Campo da Ordem, enquanto kombis que fazem diariamente o vai-e-vem da favela posicionam-se em uma das pontas, estacionando uma ao lado da outra. Os moradores se apoiam, conversam e organizam gritos de protesto, que ganham coro aos poucos. Embaixo da garoa fina, a multidão caminha pela Penha acompanhada por viaturas da polícia, suplicando mais uma vez por paz.

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