31 de outubro de 2025
Recomeços possíveis: a qualificação profissional e a reconstrução de trajetórias no sistema socioeducativo do RN
Autor: Daniel Menezes
Parceria do Senac RN com outras instituições mostra resultados na vida de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade
Por Rangel Pontes e Habyner Lima — Natal(RN)
Aos 16 anos, em um ambiente marcado pelo silêncio e pelas grades, a adolescente Milla Miranda segura o livro preferido — A Princesa em Treinamento — e resgata na memória a vida antes de chegar ao sistema socioeducativo do Rio Grande do Norte. Sentada em uma cadeira e cercada por muros sem cores, ela se vê diante da chance de reescrever a própria história.
“Minha rotina era meio doida. Era só curtir e pronto. E agora, não. Eu quero ter meu emprego, meu dinheiro, organizar minhas coisas”, conta Milla, que cumpre medida há um ano e dois meses.
(Milla Miranda é um nome fictício usado, por motivos legais, para preservar a identidade da adolescente, em cumprimento de medida socioeducativa.)

Foto: Habyner Lima
Em agosto deste ano de 2025, ela concluiu o curso “Informática para o Trabalho”, ofertado pelo Senac RN dentro do programa Educação para o Bem — uma iniciativa que levou capacitação profissional a esses jovens em situação de vulnerabilidade.
Os números mostram a importância desse tipo de ação. Um levantamento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo(Sinase) de 2024 indica que 37% dos jovens socioeducandos não têm acesso à formação profissional e que 81% não participam de atividades laborais remuneradas. Já a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lembra que a inserção de jovens no mercado é, historicamente, um desafio — e ainda mais complexo para quem passou pelo sistema socioeducativo.

Foto: Habyner Lima
No Rio Grande do Norte, a Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fundase) tem capacidade para 308 adolescentes, mas apenas 95 vagas estão ocupadas — o que, segundo a diretora de desenvolvimento institucional da Fundase, Sayonara Dias, é um dado positivo.
Ela afirma que uma das principais estratégias das políticas de atendimento para evitar a reincidência seria a inserção dos adolescentes e jovens no mercado de trabalho formal. A diretora pontua que seria um grande avanço.
Sayonara destaca que muitos chegam ao sistema com baixa escolaridade, o que limita o acesso a cursos profissionalizantes que exigem critérios de escolaridade. “É um direito básico que não foi garantido antes mesmo da medida. Muitos têm dificuldade de acompanhar as aulas por não terem base escolar”, explica.
Nesse cenário, o Senac RN, instituição com mais de 75 anos de referência na capacitação profissional, tem o Programa Educação para o Bem, criado em 2024. O projeto nasceu com o propósito de levar ensino e oportunidade a quem mais precisa, por meio de parcerias com empresas que financiam turmas para instituições.

Foto: cedida pelo Senac RN
“O sistema Fecomércio como um todo tem diretrizes importantes para trabalhar a inclusão e para que as pessoas possam participar de fato da economia e desenvolvimento social e econômico. Esse é um público que é inserido como público de atendimento do Senac dentro dos seus programas, como uma forma de trabalhar a ressocialização”, destacou o diretor profissional do Senac RN, Leandro Trigueiro.

Foto: Lucas Aguiar
O curso, de 120 horas, foi ministrado pelo Senac RN de forma remota, entre março e agosto de 2025, com acompanhamento da Fundase. Dez socioeducandos concluíram a formação com desempenho considerado satisfatório.
“O jovem desenvolve marcas formativas importantes: domínio técnico, protagonismo, inovação e análise crítica. Ele sai preparado para os desafios do trabalho”, acrescenta Trigueiro.
Os computadores usados nas aulas foram doações da Secretaria de Educação do RN. Sobre o uso deles durante a qualificação profissional, Milla lembra com entusiasmo da parte prática do curso, quando aprendeu a montar tabelas de preços de alimentos e produtos.
“Foi uma oportunidade única. A professora era muito capacitada, sempre ajudava e dava um jeito da gente conseguir entregar as atividades. Minhas notas foram boas”, diz, orgulhosa.

Foto: Habyner Lima
Segundo o pedagogo da Fundase, Matheus Lucas, houve um esforço do Senac RN para adaptar a metodologia para a realidade desses adolescentes.
“A gente tem essa premissa de que a profissionalização, a oferta de cursos profissionalizantes, não só entrega a eles o poder de ação para procurar oportunidade de trabalho, mas faz eles subirem um degrau de conhecimento”, afirma.
Para Milla, essa oportunidade acendeu uma nova perspectiva de futuro: “sempre é bom a gente ter um emprego. Fiz curso de cílios, de informática, de sobrancelha também. Quero trabalhar na área da beleza. Me imagino no meu salão, no meu próprio estabelecimento”.
A pesquisadora Melayne Macedo, do Observatório do Trabalho e Políticas Sociais do RN, acredita que investir na formação desses jovens é investir em transformação social. “Qualquer jovem no mercado de trabalho traz uma possibilidade de inovação e de construir novos olhares. A gente está em um mercado de trabalho muito adoecido e adoecedor das pessoas. Ter um jovem que já viveu uma experiência difícil da privação de liberdade pode agregar com outras possibilidades de superação que ele traz de maturidade que, às vezes, um jovem que não passou pelo sistema socioeducativo, tem”, analisa.

Foto: Rangel Pontes
Além da qualificação ofertada, o Senac RN também atua para conectar os alunos certificados ao mercado com o Senac Carreiras. Ele capta vagas de emprego e fortalece o vínculo entre capacitação e inserção profissional.
“Como diz o presidente da Fecomércio, Marcelo Queiroz, o Senac não cumpre sua missão apenas qualificando com excelência. Cumpre quando o jovem consegue se inserir no mercado ou se desenvolver. Essa é a verdadeira transformação”, conclui Leandro Trigueiro.
Outra iniciativa que busca fortalecer a empregabilidade desses jovens é o Programa Horizontes Potiguares, criado em 2024 pela Fundase. O projeto viabiliza a entrada de egressos do sistema socioeducativo no mercado formal de trabalho. No Rio Grande do Norte, dois jovens já foram contratados por uma empresa terceirizada por meio da ação. “A gente considera uma ação de muito sucesso, porque gerou subsídios para qualificar no pós medida, ao mesmo tempo em que a gente avançava na pauta da empregabilidade desses jovens. Foram egressos que tiveram desempenho laboral irrefutável, de altíssima qualidade”, disse o pedagogo da Fundase, Matheus Lucas.
Em cada certificado entregue, há mais do que uma história de superação: há a força de uma economia que se constrói com oportunidades. Ao transformar trajetórias individuais, iniciativas como essas também ajudam a transformar o futuro econômico do Rio Grande do Norte.
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