31 de março de 2024

Crime organizado é ameaça à democracia 60 anos após golpe militar, diz cientista político

Autor: Redação

Da CNN - Se, há 60 anos, a democracia brasileira foi interrompida por um golpe militar, nos dias de hoje uma ameaça a ela não viria, necessariamente, de instituições, na opinião do cientista político e professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) Bernardo Kucinski. Hoje, o crime organizado é um risco iminente, disse à CNN.

 

Em uma democracia, o monopólio da violência é do Estado e ela é exercida de acordo com a lei. O que nós estamos vendo em alguns países da América Central, e também em algumas regiões do Brasil, é a força sendo exercida ilegalmente. Isso é sempre um risco para democracia

Bernardo Kucinski

É por essa razão que, para o escritor, o Estado precisa ser “forte” para não permitir “a aplicação da força pelos ‘fora da lei'”. “Quando o Estado é condescendente com essa situação, perigamos”.

Kucisnki ressalta ainda que, para além do crime organizado, a possibilidade de um novo golpe de Estado no país nunca deixou de existir. “Embora, eu ache que não precisa ser um golpe clássico, daqueles que todos esperam, com tanque na rua. Pode ser um golpe disfarçado, dissimulado”, explica.

Autor de um conjunto de livros que reabrem as gavetas do regime militar, Kucinski era estudante na USP no início do período ditatorial. Sua família foi atingida por consequências do golpe. Em 1974, sua irmã, Ana Rosa Kucinski, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), desapareceu junto com seu marido, Wilson Silva. O casal integra a lista de 434 mortos e desaparecidos da ditadura militar.

O escritor Bernardo Kucinski / 11/07/2016 – Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo/AE

Diante dos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, o Brasil corre risco de sofrer de novo um golpe?

 

Sem dúvidas. Embora, eu ache que não precisa ser um golpe clássico, daqueles que todos esperam, com tanque na rua. Pode ser um golpe disfarçado, dissimulado.

Eu acho que, por exemplo, a cassação da Dilma [Rousseff] não deixou de ser um golpe dissimulado.

E também eu vejo um perigo muito grande no horizonte com o aumento da violência. Veja o que está acontecendo no Equador, em El Salvador, em alguns países da América Central, onde o crime organizado está ocupando partes importantes do território, está se infiltrando na máquina política. E nós temos visto o recrudescimento do crime organizado no Brasil

A própria maneira como o bolsonarismo se identificou com o golpe 64 mostra que a possibilidade de um golpe, também do estilo clássico, sempre vai existir na medida que se acirrarem as contradições. Por isso, é importante haver políticas públicas permanentes que critiquem esse tipo de postura antidemocrática.

Como se dá a ameaça à democracia pelo crime organizado?

Em uma democracia, o monopólio da violência é do Estado e ela é exercida de acordo com a lei.

O que nós estamos vendo em alguns países da América Central, e também em algumas regiões do Brasil, é a força sendo exercida ilegalmente. Isso é sempre um risco para democracia.

É por isso que um Estado Democrático de Direito tem que ser um Estado democrático, mas também tem que ser um Estado forte, um Estado que realmente não permita a aplicação da força pelos ‘fora da lei’.

Quando o Estado é condescendente com essa situação, perigamos.

O senhor acredita que a forma como o autoritarismo se apresenta na nossa sociedade se alterou de 60 anos para cá ou permanece, em essência, a mesma?

Essa questão do autoritarismo é importante pelo seguinte. Justamente aquele tópico que eu analisei antes, da violência, do crime organizado, acaba induzindo as pessoas a aceitarem soluções autoritárias.

Tanques são vistos a frente da Esplanada / Reprodução/Senado

Por isso, é importante que não se permita um avanço do crime organizado.

O autoritarismo é um apelo muito fácil. De repente, você tem uma situação e as pessoas aceitam o autoritarismo como solução. Mas, como nós vimos pelo golpe de 1964, ele nunca é solução. Acho que temos adormecido na sociedade essa aceitação do autoritarismo

O que explica, na sua avaliação, a ida de grupos às ruas pedindo a volta do regime?

Eu acho que esse é um aspecto bastante delicado e bastante perturbador, porque quando “pessoas de bem” — e até pessoas educadas e personalidades — se identificam com atrocidades contra o ser humano, sinal de que alguma coisa está doente na sociedade.

Então eu insisto que é muito importante que as atrocidades já cometidas sejam punidas, que a denúncia da ditadura e dos atos antidemocráticos seja uma política pública constante. É muito importante que a gente pare de homenagear ditadores. Nós ainda temos até hoje uma rodovia Castello Branco, e ele foi um ditador

Nós temos, infelizmente, uma tradição cultural de elogio da violência. Então é uma tarefa muito difícil, mas eu acho importante esse trabalho para reverter isso.

O senhor associa a memória da ditadura como um possível componente do bolsonarismo. Por quê?

Foi o próprio bolsonarismo que se identificou com a ditadura. Ele se apresentou como um herdeiro dos ditadores, do aparelho repressivo.

Foi muito chocante o voto do [Jair] Bolsonaro, na sessão do Congresso que discutiu a cassação da presidente Dilma Rousseff, dedicado a um reconhecido torturador, Brilhante Ustra.

Eu acho que esse episódio ultrapassa qualquer possibilidade da nossa imaginação. Seria como um político na Alemanha, no Parlamento, dedicar seu voto ao [Adolf] Hitler, por exemplo.

É muito grave que, depois disso, ele ainda tenha sido eleito presidente do Brasil. Então é por isso que eu acho que nós ainda somos uma sociedade pouco amadurecida, no sentido político e ideológico.

Sessão do Congresso que depôs João Goulart / Reprodução/Senado

Não sou muito otimista sobre as perspectivas da nossa sociedade. Veja, nós tivemos mais de 20 anos de governos populares, apenas interrompido pelo governo Bolsonaro. E, no entanto, a violência na sociedade não diminuiu, a miséria não diminuiu, o desemprego não diminuiu.

A nossa sociedade está muito longe de ser moderna e que pode ver com mais segurança o seu futuro.

É muito chato ser pessimista em uma entrevista assim para um meio de comunicação, mas é o que eu sinto hoje. 

Como o senhor descreveria o impacto da ditadura na trajetória do Brasil?

A ditadura teve os seus impactos negativos, mas ela também trouxe transformações profundas no Brasil.

Foi um período de grandes transformações econômicas, que chegou a ser chamado até de “milagre econômico”. Mas grande parte dessas realizações se esfumaçaram com o tempo.

E, no plano político, social e ideológico, os efeitos negativos da ditadura foram muito grandes, e, alguns deles, irrecuperáveis.

Eu acho que o principal aspecto negativo, do qual aliás poucas pessoas falam, foi o expurgo nas universidades.

Os maiores pensadores brasileiros na época foram expelidos do Brasil. Eram lideranças nas suas diferentes áreas, pessoas como Darci Ribeiro, Celso Furtado, Paulo Freire, Mário Chamberg, médicos sanitaristas, biólogos, cientistas sociais. Todos foram expelidos da universidade e a universidade brasileira nunca mais foi a mesma.

A gente se recompôs desse período ou permanecem resquícios?

Permanece muita coisa a ser resolvida. Permanece a questão dos desaparecidos políticos, porque a comissão foi dissolvida no governo Bolsonaro e não foi reinstalada. E essa é uma questão central em qualquer sociedade humana.

E também ainda há processos na Justiça de familiares que demandam esclarecimentos e punição de culpados. E esses processos estão em marcha lenta ou engavetados.

Eu acho que também faltou à nossa sociedade uma política pública de tratamento crítico da memória da ditadura para que aquele período seja estudado de forma crítica e séria para que essas coisas não se repitam.  

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