8 de dezembro de 2025
STF x Senado: marco temporal vira centro da tensão entre Poderes
Autor: Daniel Menezes
O marco temporal para demarcação de terras indígenas transformou-se, nesta semana, no epicentro de uma disputa aberta entre Senado e STF. A partir desta terça-feira (9) e, sobretudo, na quarta (10), os dois Poderes avançarão, simultaneamente, sobre o mesmo tema, um embate que combina reação institucional, choque de agendas e pressões políticas profundas.
De um lado, o Supremo levará ao Plenário físico o julgamento das ações que questionam a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, que restabeleceu o marco temporal. Do outro, o Senado tentará votar, a toque de caixa, a PEC 48/2023, que insere a tese diretamente na Constituição, numa resposta direta ao entendimento firmado pela Corte e à recente decisão monocrática de Gilmar Mendes que irritou parlamentares.

Marcha das Mulheres Indígenas reuniu milhares de participantes de diversas etnias e estados na Esplanada dos Ministérios no último mês de agosto.Pedro Ladeira/Folhapress
A simultaneidade das agendas, algo raro em temas estruturantes, elevou o marco temporal à condição de símbolo do atual tensionamento entre os Poderes.
O que é o marco temporal e por que ele voltou ao centro da disputa
O marco temporal é a tese segundo a qual os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando, ou disputando judicialmente, em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
A tese voltou ao centro das tensões após o STF declará-la inconstitucional em setembro de 2023, afirmando que:
- os direitos territoriais indígenas são originários, anteriores ao Estado brasileiro;
- a proteção não pode ser limitada à presença física em 1988;
- expulsões, deslocamentos forçados e esbulhos históricos inviabilizam o uso de uma data fixa como referência.
Em reação, o Congresso aprovou a Lei 14.701/2023, restabelecendo o marco temporal. O presidente Lula vetou os principais trechos, mas o Legislativo derrubou o veto no fim de 2023, reacendendo o impasse. A disputa voltou ao STF, acionado tanto por partidos favoráveis ao marco (PL, PP e Republicanos) quanto por organizações indígenas, que pedem a reafirmação da inconstitucionalidade.
Paralelamente, o conflito ganhou escala política com a mobilização de senadores em torno da PEC 48/2023, que busca constitucionalizar o marco temporal e blindá-lo de futuras revisões, uma escalada que transformou o tema num dos principais focos do atual confronto institucional entre Congresso e Supremo.
STF: julgamento presencial e pressão indígena
Inicialmente marcado para o Plenário virtual, o julgamento foi transferido para o Plenário físico a pedido de entidades indígenas, ampliando visibilidade e impacto político.
Na quarta (10), o STF ouvirá sustentações orais das partes, sem votação. A análise será retomada em data futura, a ser definida pelo relator, ministro Gilmar Mendes.
O tribunal avaliará a validade da Lei 14.701/2023, aprovada após o Congresso derrubar o veto presidencial e que restabeleceu a tese já considerada inconstitucional.
A decisão do Supremo terá efeitos diretos sobre:
- mais de 80 casos semelhantes em disputa;
- mais de 300 processos de demarcação pendentes;
- o marco jurídico da política indigenista para as próximas décadas.
Senado inicia ofensiva própria e tenta aprovar a PEC 48/2023
Enquanto o STF inicia o julgamento, o Senado se organiza para votar a PEC 48/2023 já nesta terça-feira. A proposta, de autoria do senador Dr. Hiran (PP-RR) e relatada por Esperidião Amin (PP-SC), deve ir ao Plenário por meio de um requerimento de calendário especial, que dispensa a análise da Comissão de Constituição e Justiça e permite votação em dois turnos no mesmo dia.
O avanço da PEC ocorre em meio à reação dos senadores contra a decisão monocrática de Gilmar Mendes que restringiu à PGR a prerrogativa de apresentar pedidos de impeachment contra ministros do STF. A medida irritou especialmente o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), que prometeu uma "força-tarefa" legislativa para "restabelecer a altivez institucional" da Casa. No centro desse movimento, está justamente o marco temporal.
O parecer de Amin sustenta que:
- a Constituição já apontava para um marco de referência em 1988;
- o Congresso, como poder constituinte derivado, pode definir o tema na própria Constituição;
- a PEC traria segurança jurídica e previsibilidade, ecoando argumentos da bancada ruralista.
Governo Lula atua para derrubar o marco temporal
O governo Lula é frontalmente contrário ao marco temporal. Desde a campanha, Lula classificou a tese como inconstitucional e lesiva aos povos indígenas.
A posição se traduziu em três movimentos:
- Veto presidencial aos trechos centrais da Lei 14.701/2023.
- Apoio às ações que pedem ao STF que reafirme a inconstitucionalidade.
- Atuação política no Senado para impedir o avanço da PEC 48/2023.
Para o Planalto, o marco temporal:
- viola direitos originários assegurados pela Constituição;
- aumenta risco de conflitos fundiários;
- compromete a política indigenista;
- abre brecha para exploração econômica de territórios tradicionais.
CNBB vê "momento gravíssimo" e fala em "retaliação ao STF"
A escalada institucional levou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) a divulgar nota nesta segunda-feira (8) classificando o momento como "gravíssimo". A entidade afirma que:
- a PEC 48 e a Lei 14.701 representam "o maior retrocesso em matéria indígena desde 1988";
- o Congresso promove uma "retaliação ao STF";
- o marco temporal negaria direitos "sagrados" dos povos indígenas.
A CNBB defende que os direitos indígenas são cláusulas pétreas e não podem ser alterados nem por emenda constitucional.
Por que a FPA defende o marco temporal
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), maior bancada do Congresso, é uma das principais patrocinadoras da tese. A defesa se baseia em seis pilares:
- segurança jurídica para propriedades rurais;
- prevenção à "expansão ilimitada" de terras indígenas;
- previsibilidade econômica para o agronegócio;
- interpretação de que a Constituição indicaria um marco em 1988;
- pressão de produtores em áreas de conflito;
- reação à decisão do STF de 2023.
A FPA se articula para aprovar a PEC e consolidar o marco temporal como norma constitucional.
O que está em jogo
No STF
- análise da constitucionalidade da Lei 14.701/2023;
- possível reafirmação da inconstitucionalidade do marco temporal;
- garantia dos direitos originários e da jurisprudência de 2023.
No Senado
- tentativa de constitucionalizar o marco temporal;
- reação ao STF e à decisão de Gilmar Mendes;
- alinhamento com interesses de ruralistas e governadores.
Um duelo jurídico e político sem precedentes
O país entra em uma semana em que dois poderes caminham em direções opostas:
- o STF pode derrubar novamente o marco temporal;
- o Senado pode tentar constitucionalizá-lo.
O desfecho jurídico, político e institucional pode redefinir a política indigenista brasileira e reconfigurar, de forma profunda, a relação entre Congresso e Supremo.
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